Cuba além de Fidel

A imagem mostra a última manifestação em Havana, capital de Cuba, contra os Estados Unidos, um país onde a imprensa corporativa insiste em dizer que não existe participação popular na política

A renúncia oficial do comandante-em-chefe do governo cubano, Fidel Castro Ruiz, um dos líderes da revolução de 1959, provocou o previsível alarido na mídia corporativa do país. A maior parte dos discursos proferidos na Rede Globo e demais grandes meios, em seus diversos suportes - televisivos, radiofônicos, impressos e web - se deu como réplica das posições políticas estadunidenses: Cuba é uma ditadura e Fidel o déspota tirano que controlava com mão de ferro a ilha. Na emissora dos Marinhos, o jornalista William Waack, apresentador do telejornal da noite, fez o seguinte comentário na edição da terça-feira, 19/02: “O ditador cubano Fidel Castro, já velho e combalido, assim como as suas idéias, renunciou ao cargo de mandatário da ilha”. O editorial de Waack foi coberto, em parte, com imagens de Fidel andando com dificuldade e vestido com o uniforme da delegação olímpica cubana. Outros comentaristas e jornalistas seguiram, com poucas variações, o mesmo ponto de vista. Quanto às “análises” sobre os desmembramentos políticos em Cuba veiculadas país afora por “especialistas”, estas se resumem em um discurso único ancorado na possibilidade da ilha vir a ser engolfada pela “modernização” neoliberal, que se esconde sobre o manto do “retorno à democracia”. As fontes então são os exilados de Miami, dissidentes políticos do regime, políticos norte-americanos e o próprio George Bush, o paladino do “mundo livre”. Aliás, Bush Jr. e sua porta voz, a Fox News, jamais se mostrariam dispostos a tecer algum comentário sobre as liberdades políticas na Arábia Saudita, uma monarquia autocrata, aliada do seu império, que oprime mulheres e não conta com qualquer espécie de representação popular. Ou mesmo o exemplar regime “democrático” do Paquistão, também seu aliado. O fato é que para a grande mídia o conceito de democracia é assimilado a partir dos próprios valores políticos encarnados pelos donos dos meios e os interesses por eles representados. Quase nenhuma reportagem adentrou, de fato, ao quadro econômico-político cubano. Apenas limitou-se à periferia da questão. Um dia após a renuncia de Fidel, estive na casa de uma senhora - a quem muito estimo e amo - e ela, revoltada, fez o seguinte comentário: “Cuba tem muita miséria! Uma ditadura de um homem que estava há 49 anos no poder”. Indaguei-lhe então a partir de quais informações ela construíra tal ponto de vista. Ela disse: “Passou uma reportagem aí na televisão mostrando tudo”. A angústia daquela senhora, na verdade, reflete o imaginário formado sobre o tema pela grande mídia. No entanto, ela não sabe acerca das diversas formas de representação popular que existem na República Socialista de Cuba. Claro, isso não é pauta. Existe quase um consenso, inclusive para intelectuais cubanos e aqueles que analisam seriamente a situação da ilha, que o processo político que se desenrola no país desde 1959 tem sofrido contradições que muitas vezes são antagônicas às diretrizes propostas pela revolução. E uma delas é a própria personificação desse processo na figura de Fidel Castro. Antes da renúncia de Fidel, o jornal Juventude Rebelde, de Havana, publicou matéria a qual noticiava que setores universitários interpelaram autoridades do Estado acerca de diversos temas. E assim também ocorreu na última grande Feira do Livro de Havana, onde os debates sobre os destinos políticos da ilha ganharam a agenda, conforme informou o jornal porta-voz do Partido Comunista Cubano, o Gramna. Em entrevista ao jornal Brasil de Fato, o historiador cubano Ariel Dacal, morador de Havana, afirma: “É certo que o sistema cubano se personalizou muito em sua figura (na de Fidel), mas isso, desde um ponto de vista histórico, está muito distante da noção de ditadura, não só do povo cubano, mas também dos povos da América”. A perspectiva do pequeno país se desvencilhar de um bloqueio econômico que já dura mais de quarenta anos é uma situação que arrebata a maior parte da sua população e seus dirigentes, assim como diversas lideranças internacionais. Há que existir algum tipo de transição, claro, mas esta necessariamente não deverá seguir o receituário neoliberal proposto pelos Estados Unidos, que exportam valores “democráticos” para diversas partes do mundo à custa de infindáveis derramamentos de sangue. No Leste Europeu, após a queda do muro de Berlim, processos fórceps de transição de economias planificadas para as de mercado geraram privatizações selvagens e muita corrupção. Na América Latina, as reformas liberalizantes foram frustrantes do ponto de vista dos investimentos e crescimento. Cuba poderá surpreender favoravelmente no primeiro quartel do século 21, pois conta com um patrimônio social invejável. O índice de desenvolvimento humano (IDH) de Cuba é 0,871, nível considerado de país desenvolvido (superior a 0,8). Os indicadores de saúde seguem a mesma trilha. A taxa de mortalidade infantil é de seis mortes por 1.000 nascidos vivos, pouco acima da média dos países mais ricos da OCDE (cinco mortes por 1.000 nascidos vivos). A expectativa de vida é de 77,2 anos, sete anos a mais que no Brasil. Segundo as Nações Unidas, Cuba é o país que mais investe em educação no mundo: 18,7% do PIB. A taxa de alfabetização adulta é de 96,9%. São avanços galgados pela Revolução, pena que a grande mídia não dê conta dessa pauta, pois seus bloqueios ideológicos não permitem. Lembrado daquela senhora citada acima e que acredita piamente na informação da sua TV, sua casa fica a cinco minutos de diversos conglomerados humanos que contrastam com o bairro onde mora. Neles, os esgotos correm a céu aberto e as crianças vagam pelas ruas sem a mínima perspectiva de futuro. E bairros como estes são maioria na cidade que esta senhora reside, ainda que o jornalista que a informe toda noite insista em dizer que a miséria existe é em Cuba.

Comentários

Zeca, seu texto me fez ter mais bagagem para construir os argumentos sobre o tema. Tenho tido muitas conversas sobre Cuba, a renúncia de Fidel, se lá é ditadura ou não e sempre procuro fatos que comprovem que Cuba não é atrasada. Falo do indicie de analfabetismo que é mínimo, da saúde e etc. Mas agora terei mais subsídios! Passarei seu texto para algumas pessoas que têm em mente essa visão deturpada de ditadura. Um beijo e saudade
Anônimo disse…
Zeca,

Tens companhia nesta luta. Embora esteja na condição de aluno, manifesto inquietações dessa mídia suja.
Anônimo disse…
O mesmo se dá com a Província Soteropolitana.
Abará disse…
Bom, agora é que Cuba terá problemas: com o afastamento de Fidel e a liderança do seu pouco "simpático" irmão. Até qnd Cuba resistirá? Os urubumericanos já estão falando em ajudar a ilha assim que Castro passar dessa para uma melhor... e aí? A 'saúde' de Cuba está indo embora com a de Fidel...
Unknown disse…
Olá Zeca,blz?
Apesar de não querer polemizar não posso deixar de opinar quanto ao seu comentário.Por acaso um homem que está no poder a mais de 40 anos,nunca tendo neste período permitido eleições livres,que manda fuzilar opositores no paredão,não permitindo que as pessoas exerçam um dos direitos básicos do ser humano, que é o de ir e vir,aproveita a deixa e explica pra tua aluna Flavia Vasconcelos que postou o primeiro comentário,como deve ser chamado este homem, logo que DITADOR é muito pesado para o guerrilheiro ancião.Desculpa entrar no seu blog pra te contrariar,mas se você me manda a pagina atualizada, me sinto a vontade para expor minhas discordancias.Um abraço Zéu da Bahia
Textos ao Vento disse…
Olá, Zéu, blz?

Seguinte: sua concepção de democracia e participação popular é limitada à chamada democracia do festival de marketing, essa que ocorre de quatro em quatro anos. Nela, ganha quem tem mais recursos, mais pirotecnias propagandísticas etc. É uma farsa, na maioria das vêzes. Falo de processo político participativo e não apenas representativo. E quanto às eleições livres, vc já foi a Cuba, Zéu? Já viu os conselhos populares reunidos? Sim, Cuba tem e teve problemas e contradições políticas, inclusive sérias. Um país que sofre um bloqueio econônimo do império há mais de 40 anos enfrenta dificuldades, e muitas! Em relação aos paredões, bem, se ocorreram excessos com os opositores que outrora humilhavam camponeses, violentavam suas mulheres e filhas e tratavam o povo cubano no fio das botas, é aquele negócio: cada ação deve uma reação, não é mesmo? Mas com certeza os paredões cubanos não fizeram mais vítimas do que os milhares de camponeses massacrados aqui em disputas de terras por parte dos senhores do latifúndio. E quanto ao "básico do ser humano", isso é forte hein, Zéu da Bahia? Imagina saúde e escola públicas de excelência para todos? E outra: com os índices sociais de Cuba o país está preparado para reformas econômicas, mas uma coisa o povo de Cuba não negociará: sua soberania e os avanços da revolução. Quanto a Fidel ser ditador ou não, é melhor e lá em Cuba e perguntar à maioria da população e não se balizar pelos informes da máfia de Miami que são veiculados pela Rede Globo, a qual vc assiste com afinco. E quanto ao recado para a Flávia, fale vc mesmo com ela, pois se trata de uma pessoa madura e blindada contra achismos idiotas.
Este comentário foi removido pelo autor.
Texto perfeito!

Infelizmente, as pessoas ainda têm aqueles pulhas dos telejornais brasileiros como os donos da verdade. Nós, que temos opiniões destoantes, somos os loucos, alienados. Há algum tempo resolvi o meu problema com os sacanocratas das Tv's, pressionando o botão OFF do meu aparelho. Foi fácil.

Esta semana com a renúncia de Fidel, também estou economizando alguns trocados dos impressos.

Falta pouco para nos chamarem de comunistas, achando que nos ofendem!

Zeca, posso colocar um link no meu blog?
Anônimo disse…
Claro, Humberto! Será um prazer. Colocarei também o link do seu blog no Textos ao Vento, pois Imprensa Marginal é muito bom e bem articulado!
Unknown disse…
Meu querido amigo Zeca,
Como já tinha colocado no meu primeiro comentário,não pretendo alimentar polêmicas,apenas,se você me permite,externar a minha opnião, que neste assunto ( e em muitos outros)diverge da sua,mas,so para encerrar o assunto, não encontro justificativas, até pela minha formação, para o extermínio de seres humanos, e a privação da liberdade por motivos políticos, como ainda hoje e não no passado, como você sugeriu, acontece em Cuba.Quanto aos cubanos que vivem em Miami posso lhe assegurar que vivem em condições muito melhores que seus parentes que não conseguiram fugir ou foram capturados em fuga e fuzilados no paredão.Um grande abraço, e "viva a diferença".Zéudabahia P.S. Como professor e formador de opnião, você tem sim responsabilidade com seus alunos e com as pessoas que visitam esta pagina,portanto esta história de "achismos idiotas" não me atinge e não deveria atingi-lo tambem.
Que Fidel não é ditador (e nenhum eufemismo parecido) isso eu sei e "encorpei" essa idéia mais ainda com as aulas e conversas com Zeca, meu eterno professor e sabedor de suas responsabilidades de formador de opinião. Zéu, é claro que todos devem ter opiniões próprias e, mais ainda, devem expressá-las, mas te proponho buscar informações alternativas e leituras mais aprofundadas sobre Cuba e sua política, ok?
Unknown disse…
Olá Flavia!
Esta afirmativa quanto a Fidel ser ou não um ditador(sanguinário)vem de encontro a minha colocação sobre a responsabilidade de professôres e formadores de opnião.Não se trata de "achismos idiotas",portanto,o grande barato é beber de várias fontes,só assim desenvolvemos o "nosso" senso crítico e aí sim estaremos blindados e preparados para receber todas as informações que nos possam ser passadas absorvendo as que realmente são importantes .Saudações Zéu da Bahia
Textos ao Vento disse…
Sr. Genetica (É assim que está escrito, sem acento)

Interessante: "beber de várias fontes". Perfeito! E é o que parece que você não faz, nobre Zéu. Acredite, quando leio seus argumentos só penso em William Bonner falando, ou então Miriam Leitão e Renato Machado. Pensamento único de fontes únicas. será que realmente você vasculha fontes diversas? Fica aqui a pensar com os meus botões.
Unknown disse…
Oi zeca,
O que realmente me salva do fogo do inferno da alienação é que além de William Bonner,Mirian Leitão e Renato Machado, eu também leio coisas como Textos ao Vento que é um excelente contra-ponto a grande imprensa.Com relação ao acento de genética,gostaria de esclarecer que trata-se de um endereço de e-mail,mas de qualquer forma terei mais cuidado ao postar comentários para sua página,isto se você permitir que eu volte a comentar,pois não tenho a menor intenção de lhe aborrecer, e pelo jeito é o que parece que está ocorrendo.
Textos ao Vento disse…
Desculpa, Zéu. Não quis lhe ofender ao falar do acento, digo com siceridade. E quanto às nossas divergêndcias, acho-as salutar para a democracia. Saiba que vc será sempre muito bem vindo nesse espaço. Um abraço!

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