A "ética" da avestruz e a esperteza da cascavel



Acabei de ler o livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., “A Privataria Tucana”. E li também o artigo do articulista de O Globo, Merval Pereira, que entendeu a publicação como “ficção”. Ficção? Como assim? Não há nada na obra que remeta a esta situação. O livro é um condensado de fatos que não causa supresa para quem tem acompanhado com olhar crivo o desenrolar da vida política do País nos últimos 25 anos. O processo de privatizações da era FHC foi marcado por muita corrupção e bandidagem, como o autor demonstra cabalmente. Fato. O que Pereira faz, mal e porcamente num texto sofrível e teleguiado, é tentar encantar incauto.  
A estratégia de negar com profundo silêncio um rigoroso e exaustivo processo de apuração jornalística, e amplamente documentada, denuncia algo. E perigoso. Em recente comentário veiculado nas redes sociais, o jornalista Bob Fernandes declarou: “O silêncio da grande mídia em relação ao livro de Amaury Ribeiro pode ser revelador”. Sim, revela-nos muitas inquietações, e a mais preemente ancora-se num argumento-tese, e básico: parte significativa da grande mídia no Brasil está organicamente partidarizada. E se não fosse a Internet possivelmente milhões de pessoas não teriam acesso às informações contidas na apuração de Amaury Ribeiro.
E este é um dado perigoso. A despeito das risíveis posturas de colunistas e comentaristas acerca do conteúdo do livro, fazendo-se de desentendidos ou, quando não, tentando desqualificá-lo com argumentos que beiram o cretinismo débil e com forte dose de cinismo, são posicionamentos que ensejam a desconfiança de que há realmente algo de muito podre fermentando. Um serpentário inteiro pode está apto a vir à luz.
O caso Privataria Tucana, a nosso ver, estabelece paralelo com outro ocorrido nas décadas de 30 e 40. Um alinhamento partidário de meios de comunicação do tipo que tem sido registrado no Brasil nos últimos 10 anos – jornalistas, colunistas e empresas – só encontra similaridade na poderosa orquestra de mídia levada a cabo pelo Partido Nazista na Alemanha.
A indústria do escândalo e o estabelecimento de tribunais de exceção acantonados nos aquários das redações, com o concomitante pacto de silêncio quando se trata de noticiar algo que deponha contra seus pares políticos, foi estratégia largamente usada por Adolf Hitler. Joseph Goebbels assim orientara. A partir de meados dos anos 20, o Partido Nazista agregou em sua entourage a esmagadora maioria dos grandes jornais alemães que o acompanharam até a assunção ao poder, em 1933. E foram peças de propaganda determinantes para desestabilizar a República de Weimar. Posteriormente, a partir de 1935, jornais foram cooptados e comprados mundo afora para servirem de escoadoro da agência de notícias Transocean, também controlada pelo partido. No Brasil, o Diário de Notícias da Bahia, o Meio Dia, do Rio de Janeiro, e a Folha da Manhã, em Recife, foram alguns deles.
O episódio envolvendo o livro recém-lançado reúne ingredientes que, no mínimo, merecem reflexão mais séria acerca da conduta dos grandes conglomerados de mídia do País. Não se trata apenas de uma opção ideológica. A orquestração editorial dessas corporações sinaliza deliberado objetivo de desestabilização do sistema político. A despolitização perfaz a base argumentativa. Político é sinonímia de corrupção, desde que não se encontre em destaque no campo oposicionista, como se verifica com o ex-candidato a presidente José Serra. É a “ética” da avestruz escondendo a esperteza da cascavel.
Segue-se à risca a tarefa de blindagem total às hostes da oposição partidária de direita como estratagema à desconstrução de imagens e reputações do campo governista. Mesquitas, Frias, Marinhos, Civitas e rêmolas menores buscam diariamente seus reichstags para incendiar. “Às favas com os escrúpulos”, afirmara o coronel Jarbas Passarinho quando questionado sobre os atos de exceção do Regime Militar. E caprichosamente a história reedita a frase-mestre do arbítrio com os grandes meios de comunicação do Brasil no século XXI. As serpentes estão à espreita. E é bom enfrentá-las!  

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