Um ensaio sobre a cegueira no estacionamento
Por Nilson Galvão
Fechava
os olhos quando era criança, pra experimentar a sensação de não
enxergar. Mas era por pouco tempo, por alguns passos, talvez até em
função mesmo da dificuldade de lidar com essa limitação tão contrária a
nossa ansiedade por olhar pras coisas. Nós, os que enxergam as coisas.
Não tinha nem um centésimo do desamparo que vivenciei na exposição
"Diálogo na Escuridão", no estacionamento do Salvador Shopping. Um
ambiente de completo breu, onde por uma hora usamos bengala e somos
guiados ... por guias cegos.
Tatear
o mundo é muito diferente, sim. As coisas viram texturas, a gente quase
se perde na falta de referências visuais, como se estivesse flutuando,
mas acaba se conectando à realidade graças aos outros sentidos. Não
saquei direito os cheiros. Me agarrei ao tato. A audição é que foi um
espanto: como o ambiente simula uma caminhada por uma cidade real, há
muitos sons em volta, o que pra mim virou uma verdadeira cacofonia. Sou
dado a labirintices, então acabei ficando meio tonto. É estranho: como
se o cérebro associasse ao silêncio a ausência de imagens, e,
confrontado com os sons, amplificasse e misturasse tudo.
E
não é licença poética: você fica de fato inseguro... na hora de
atravessar a rua. A guia disse que essa é a coisa mais difícil pra ela.
Tem autonomia, até anda sem bengala dentro do prédio e em casa - e na
exposição -, ambientes já mapeados em sua cabeça. Mas pra atravessar a
rua precisa pedir ajuda porque os sons confundem. E Salvador não tem
sinaleiras com alertas auditivos, não tem calçadas sinalizadas. Ela deu
uma dica: ao ajudar um cego a atravessar, jamais vá puxando. Dê o braço
pra que ele pouse a mão, assim saberá se você desceu a calçada, se tem
uma depressão ou um obstáculo no chão, e irá se ajustando a esses
sinais.
Ela
se vira, está aprendendo a trabalhar com programas de computador que
têm aquele dispositivo de traduzir em audio o que está na tela. No
mercado de trabalho, há possibilidade de atuar por exemplo como
operadora de call center. Ela parece tranquila e vivaz. O mais genial na
exposição é que não faz você ficar com pena dos 'deficientes visuais'.
Só faz você se colocar no lugar deles, entender como é difícil ser cego
em terra de 'eficientes visuais', mas sobretudo que é absolutamente
possível viver assim - ainda mais se a gente se preocupar em não
dificultar a vida de quem precisa atravessar as nossas ruas tão cheias
de som e fúria...
Comentários