Nem sempre a lua vai sorrir


Já passava das 13h30. O domingo corria conforme desenhado. Depois de castigar a sola do tênis por seis quilômetros numa corrida prazerosa e encarar um self service daqueles que o sujeito sai cheirando a comida, o script de Marcos deveria ser levado a cabo.
O quarto, as revistas não lidas, o livro marcado inconcluso. O Bahia que jogaria às 18h. Tudo pronto a ser devorado.
Domingo resolvido. Esparramar na cama e fazer o que gosta. Coisas de cinquentão.
Antes, ele alcançou o celular que convidava a uma última olhada. Havia ditado a si próprio o detox digital desde às 9h, quando acordou. Necessário. A overciber da semana reiniciaria no dia seguinte. Um último toque num app de relacionamento, espécie de aplicativo bumerangue que já frequentava seu aparelho num jogo de downloads intermitente, conforme o momento existencial e emocional. Se a loja fosse multá-lo pelas inúmeras vezes que apagara e voltara com a conta era certeza de falência.
Um, dois, três, quatro... no quinto deslizar, um matche. Ok! Será aquela boa tarde e tudo bem, pensou Marcos.
Ledo engano.
O sorriso de Lúcia lhe paralisara. Impossível não dar vazão àquela conversava.
Atraía. Como atraía.  
Profissões, casamentos desfeitos, alegrias, tristezas, afinidades, interesses mútuos. Papo que não cessava. Ao contrário. O chat ficou precário ante a intensidade recíproca de saber cada vez mais um do outro. O Whatsapp foi o caminho natural. Textos, sons e imagens emolduravam melhor a sintonia. Queixas ambivalentes de insucessos amorosos, gostos literários, musicais, filhos, famílias, psicanálise, instintos femininos e masculinos, risadas.
O tempo avançou. Já eram 15h30.
- Imagina, conheci uma pessoa dia desses que disse não querer ir ao Vale do Capão porque lá é lugar de maconheiro. Veja se estou me importando com quem fuma ou não maconha? Asseverou Marcos com certo tom de indignação.
“Você está de sacanagem?”, completou Lúcia.
- Vero!
“Você gosta?” Ela perguntou emendando um recurso narrativo bem usual na Internert, “rsrsrs”.
Sorriso de cumplicidade.
- Olha, tenho uma trajetória de vida, já passei por muitas coisas, nas áreas que atuo é muito comum...
Baratino.
Marcos buscava se desdobrar numa hipérbole discursiva que percorria o fio da meada. Afinal, a resposta poderia ser deletéria à conversa que transcorria tão gostosa.
Embora Lúcia tivesse afirmado no início do diálogo que “não gostava de almofadinhas” e achara Marcos um cara “descolado”, nada garantia que a moça não se sentisse desconfortável e quisesse encerrar a prosa ali mesmo.
Todo cuidado era pouco. Algumas revelações só devem ser feitas a si próprio. E olhe lá!
- Vai devagar, man. 
Refletia.
“Vou dizer, eu também gosto”.
A resposta de Lúcia foi música.
- Mesmo?
“Sim. Tenho até aqui um pouco. Não sei se é tão boa, mas tenho”.
Em segundos, a tela do celular de Marcos foi brindada com uma linda foto de um cacho de berlotas avermelhadas.
- Não faça isso! Porra, estou aqui zerado! Disse rindo pelo canal de som.
“Pois vou apertar um daqui a pouco para ver o pôr do Sol. Você está sem nada? Quer vir? A gente dá um rolé por aqui e fuma esse”.
- Você está em Stella, não é?
“Sim”!
- Olha que eu vou!
“E está esperando o que?”
- Vou!
“Ok, te mandarei minha localização”.
- É só um chuveiro e me jogo.
“Estou te esperando”.
- Caralho! Conheci essa mulher há pouco e já vou me encontrar com ela? Será? Eu vou nessa porra e seja o que Deus quiser.
Em menos de um minuto a geolocalização de Lúcia já estava no celular de Marcos.
Correu contra o tempo e se vestiu rapidamente. Ainda assim, ao apontar o carro fora da garagem, percebeu que o Sol não lhe esperaria.
- Fazer o que? Agora estou indo de qualquer jeito...
Manteve-se calmo para conduzir com tranquilidade o veículo. Adentrou a Avenida Paralela. Toda pressa do mundo teria que se limitar aos impacientes 80 por hora.
Que seja.
Sorte. Não havia trânsito e nenhum show de pagode no Wet’n Wide. Melhor assim. O carro deslizou e em menos de 30 minutos alcançou Stella Maris.
- É a primeira entrada à esquerda. Pronto, entrei. Cadê Lúcia? Vou ligar. Porra, caixa de mensagem.
Poucos segundos depois era ela quem ligava.
“Você está aonde?”.
- Aqui na sua rua. E você?
“Na porta do meu condomínio”
Marcos girou o olhar e a localizou ainda falando ao cel.
- Pronto, já te vi!
Viu e gostou. E abriu a porta.
“Você nunca fumou nesse carro? Está muito cheiroso”.
O jeito de Lúcia descontraído, leve e solto o contagiou ainda mais.
Ela entrou no carro, cumprimentou Marcos com um beijo suave no rosto e afastou o banco do carona para trás afim de acomodar com conforto aquele par maravilhoso de pernas. Em seguida, lhe dirigiu um breve sorriso. No que ele retornou. 
- Muito prazer, sou Marcos!
“Pois é, quem diria, né?”
Os gestos, a descontração.... E Marcos atentíssimo.
- Pô, e há alguns minutos conversávamos pelo Whastapp.
O cara tentava se controlar e não passar recibo de que estava nervoso. Buscava enxertar assuntos até que seu estado emocional se equilibrasse.
E foi se acalmando à medida que Lúcia o descontraia.
- Para onde?
“Segue direto e vira à direita. Temos que parar num lugar para comprar um isqueiro. Ali adiante tem um posto”.
- Ok, vá me dando o itinerário.
“Tranquilo”.
A fila no caixa da delicatessen tinha três pessoas à frente, mas, para Marcos, parecia ter trinta. Queria voltar para perto de Lúcia o quanto antes. Retornou ao carro e tomaram o rumo norte. O destino era a Praia de Ipitanga. Passados dois quilômetros aproximadamente, Lúcia acendeu o baseado e a descontração se misturou à fresca brisa vinda do mar. Talvez Marcos não estivesse sentindo tanta leveza nos últimos anos como naquele momento.
Seguiram para a área mais urbanizada do bairro, já em plena Lauro de Freitas, e acessaram a gostosa Vilas do Atlântico, quando ele teve oportunidade de relembrar o tempo que por ali residiu. Para Marcos, boa sensação. Estava com uma agradável companhia e, concomitantemente, dava vazão ao filme que lhe passava à mente. Lá atrás, bons momentos; e o presente se resumia a uma contida mais gratificante alegria.
Numa das curvas do bairro, o céu estampou a Lua Nova.
“Olha aí, está sorrindo pra gente”, disse Lúcia.
Marcos conferiu.
- É mesmo!
Saltaram numa cafeteria. Conversa não muito longa à base de Capucchino e chá inglês. Lúcia urgia voltar para casa. Deixara seu filho com os avós. Ainda assim, foi o tempo suficiente para continuar alguns temas que haviam deixado no caminho e no Whatsapp.
Para Marcos, a importância maior àquela altura era olhar fixo dentro dos olhos de Lúcia. A ansiedade passara, assim como a insegurança inicial e o nervosismo.
Marcos já se sentia Marcos. Dono de si e consciente de como agir para roubar um beijo de Lúcia. Após uma primeira tentativa sem êxito, ele tentaria uma segunda chance. Era o limite que se impunha. E torcia para dar certo. É como um pássaro que sabe o momento de retirar o néctar da flor. Em tudo há rito. E ele mais do que ninguém sabia disso. Com um adendo: não sabia explicar, mas ficara afim dela. Passara a fase de atração. Sim, isso existe. E, para ele, o inusitado encontro ia ganhando forma de projeto. Uma espécie de D0. A mente fervilhava.
Cancerianos são incorrigíveis.       
“Temos que ir. Vamos passar na sorveteria. Quero levar uns sorvetes pra casa”.
- Vamos nessa.
Provar sabores, escolher. O momento era doce.
No retorno ao condomínio, mais um beck aceso em meio às labirínticas ruas de Ipitanga.
“Encosta ali o carro”, disse Lúcia.
A conversa continuou fluindo. Marcos poderia estar enganado, mas sentia que havia reciprocidade de estarem próximos um ao outro. Como se estivesse numa sessão de terapia transpessoal, fixou olhar num ponto. Lúcia falava. Ele mirava. Se aproximou mais da face dela suavemente.
“O que é que você quer com esse olhar sedutor?”, perguntou disfarçando o sorriso.
Não respondeu, beijou-a ardorosamente. Tinha vontade. Ela permitiu. E ele quis beijar mais. E mais uma vez ela permitiu. Melhor, ela também já o beijava.
Abruptamente, Lúcia se mostrou apreensiva.
“Estamos na frente do condomínio, fica chato”.
- OK!
“Pega tua presença”.
- Pô, valeu!
Rapidamente ela saltou do veículo, e antes de bater a porta, disse: “a gente vai sair mais à frente”.
- Tá bom.
Marcos falava no automático. Porque ainda processava.
Manobrou o carro e seguiu. Foi confiante. Gostou do que havia acontecido. Pela surpresa, pelo encontro. Naquela tarde de domingo a serindipidade guiou por horas seu destino.
Chegando em casa, havia também um outro destino. Não tão doce.
- Vamos nos linkar no Instagram?
Antes não tivesse dado a sugestão.
“Ô mundo pequeno! Você é o pai da filha de Maria?”
- Como assim?
“Conheço Taiane, a irmã dela, é minha amiga desde os 15 anos. E junto com Daniela éramos as melhores amigas. Imagina, você é o pai da filha de Maria!”
- Sou o pai de Karina, que por um acaso também é minha filha e não apenas dela. Olha, vou dar a real: falo com Maria apenas o essencial sobre Karina e sequer tenho contato ou diálogo com ninguém mais daquela família.
“Tudo bem, nem tenho muito contato com Maria, ainda que ache ela uma pessoa bacana”.
Coincidências nem sempre bem vindas. Serindipidade, mais uma vez.  
Marcos sabia que era um palestino na Jerusalém ocupada. E a história tem costume de ser contada por aqueles que são pagos para escrevê-la à vontade do contratante. Como jornalista, era cônscio disso. Mas não declinou e nem buscou narrativas escapatórias. Para quem enfrentou tanques nas ruas, aquele momento era guerra de espuma. 
Fora, sim, abatido pela perplexidade. Mas não recorreria a nenhuma intifada. E sentira que a Lúcia da tarde de domingo, que havia anos tinha ligações quase que fraternas com uma pessoa que Marcos não fazia sequer questão de passar à frente, também se afastaria dele.
Respirar.
E se convencer que Lúcia foi o mais belo doce e desejo que uma tarde de domingo poderia lhe ofertar. Apenas uma tarde de domingo. E só.
- Tarantino não faria roteiro melhor. Pensou. 
Neste momento, mirou a própria tatuagem do braço esquerdo e leu em voz alta para si o que na aquarela esverdeada está escrito: O rio vai seguir seu curso.
Águas contornam pedras e seguem seus destinos.
Por vezes passam a escorrer como bolhas. Noutras se avolumam em gradientes torrentes de grandes cachoeiras.
E com o passar dos milênios, corroem as pedras.
Tempo muito longo para uma noite de domingo.
Mesmo assim, valeu a pena.

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