Fé e ciência. O que Buda e Cristo têm em comum?
Qual a verdadeira fé? Qual religião ou filosofia
representa Deus? Quem está certo ou errado quanto às narrativas das diversas
crenças professadas na humanidade? Nenhuma dessas três perguntas é respondida
em O budista e o cristão; um diálogo
pertinente. E é justamente pelo fato dessas indagações não virem à baila que
faz deste livro uma página muito especial no que se refere ao respeito às
diferenças.
Conversa elucidativa. Seja àqueles que se apegam a
dogmas e entendem sua denominação como portadora única da suposta representação
do divino; seja por se tratar de leitura leve, agradável e que apresenta
aspectos interessantes dessas religiões dificilmente comentados para públicos
mais amplos.
A obra é fruto do diálogo entre os jornalistas e
escritores Heródoto Barbeiro, iniciado no budismo aos 22 anos e que como monge
leigo adotou o nome de Gento Ryotetsu, e Frei Betto, o frade dominicano Carlos
Alberto Libânio Christo, ligado à corrente da Teologia da Libertação da Igreja
Católica. Para a prosa que resultou na publicação, os dois ficaram recônditos
três dias no convento dos frades dominicanos, em São Paulo.
A conversa, que transita por situações casuais e
também contempla ensinamentos profundos que envolvem as duas filosofias de
vida, é uma aula de ecumenismo, compreensão e convocação sensata ao diálogo
inter-religioso.
Partindo da interpretação dos dois autores, há muito
mais convergências do que divergências entre o budismo e o cristianismo.
Sidarta Gautama, o Buda, e Jesus de Nazaré, o Cristo, jamais escreveram uma
linha sequer sobre o que professavam e ensinavam. Ambos demonstravam suas
respectivas visões de mundo com atos. Os relatos envolvendo os dois
personagens, seus ensinamentos e ocorridos, foram ditos e escritos pelos
discípulos e, posteriormente, por outros seguidores.
Frei Betto e Heródoto também assimilam com
tranquilidade e sem nenhuma barreira dogmática a origem sincrética das duas
religiões. No cristianismo, dissidência do judaísmo, foi marcante a influência do zoroastrismo,
assim como o budismo bebeu muito no hinduismo. E, à frente, subdividiram-se em
diversas denominações e correntes as quais assumiram posturas diversas às das
respectivas origens.
Nem mesmo questões sensíveis da geopolítica
internacional escaparam ao diálogo. “O Dalai-Lama é chefe de uma vertente do
budismo tibetano estabelecida hoje na Índia. Mas se você for para outras
regiões budistas no mundo, ninguém sabe quem é Dalai-Lama”, afirma Barbeiro,
que, entrelinhas, o coloca também na História como herdeiro da representação do
Tibet feudal, combatido pela Revolução Chinesa, iniciada em 1949.
Da mesma forma que Frei Betto despeja uma pá de cal
numa das crenças mais caras aos criacionistas. “(...) Somos todos resultados de
uma evolução, e não filhos de seu Adão
e dona Eva. Para quem sabe um pouco
de hebraico, Adão significa terra, e Eva, vida”, explica. E prossegue: “Em toda
Bíblia não há uma só aula de doutrina ou tratado teológico (...) Por último, se
Adão e Eva tiveram apenas dois filhos homens, Abel e Caim, Como estamos aqui?
Graças ao incesto entre mão e filho?”, alfineta o frade.
Corroborando com Frei Betto, diz Barbeiro:
“Curiosamente o budismo não é criacionista, não se contrapõe à ciência. Pelo
contrário: entende que o objeto da ciência é a felicidade humana (...) quanto
mais nos aprofundamos na ciência nos tornamos religioso”, assegura o budista, a
quem o cristão emenda: “Somos todos frutos de 13,7 bilhões de anos de evolução
da natureza”. A teoria do Big Bang é aceita pelos dois como fato concreto.
E quando se adentra ao campo do amor carnal, especialmente
no que se refere à questão sexual, Ryotetsu fala com convicção: “Dentre as
religiões contemporâneas a única que tem um viés sexual é o budismo. De certa
forma, isso é uma herança do hinduismo (...) a ideia de que a força sexual é a
maior do Universo, a maior de todas”. No mesmo diapasão, Libânio lembra que
“(...) A primeira imagem de Deus que aparece na Bíblia ou na Torá é o Deus da
fertilidade. A grande promessa a Abraão era uma descendência tão múltipla
quanto as estrelas do céu e as areias das praias do mar (...)”.
Saltando à questão espiritual, quando o diálogo ganha
contornos filosóficos mais profundos, há um momento em que ao mencionar Gautama
Sidarta, Heródoto fala da “concepção do vazio” ou “deixar de existir” ao se
atingir a “iluminação”, no que é interrompido por Frei Betto com a pergunta: “É
uma forma de transcendência?”. Conforme Barbeiro, a partir da concepção
budista, a verdade suprema refere-se à percepção da suprema realidade como
vazio, por meio da compreensão intuitiva, discernimento e sabedoria. “Por isso
compreendo a morte como uma volta, e não como uma partida. Voltamos de onde
viemos, do vazio”, explica.
Neste aspecto, emerge mais um ponto de concordância
entre os escritores, a meditação. O monge leigo atenta ao fato de que no
budismo as orações coletivas são práticas comuns, “(...) mas o foco central é a
meditação”, enquanto o frade revela: “Minha maneira de orar é meditar. Já não
faço distinção entre orar e meditar”.
A situação social numa sociedade extremamente
desigual não é deixada de lado na conversa. Enquanto Frei Betto assegura a
opção socialista dos ensinamentos de Jesus, Barbeiro sustenta que o verdadeiro
budista deve estar atento à construção de um mundo melhor para todos. Jesus e
Buda pautaram suas ações dando o exemplo da renúncia à ostentação material,
muito embora os escritores admitam que o dualismo, o bem e o mal, é uma questão
a ser enfrentada. “Engels era rico e não era mau”, dispara Heródoto Barbeiro;
“Tem muita gente que é pobre e é má e tem muita gente que é rica e é boa”,
afirma Frei Betto.
Serviço: O
budista e o cristão; um diálogo pertinente, 131 páginas, foi publicado pela
editora Fontanar, 2017.
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