O monge beatnik. As alegrias e os dramas de Belchior
Do disciplinado frade
Sobral da Ordem dos Capuchinhos no Mosteiro de Guaramiranga-CE a símbolo
sexual de voz cortante e poesias-navalhadas em belas e harmoniosas melodias, Antonio
Carlos Belchior, falecido em 30 de abril de 2107, teve sua biografia escrita
por um dos mais competentes jornalistas entre os que acompanham a cena da MPB e
da cultura pop internacional. Em “Belchior,
apenas um rapaz latino-americano”, a trajetória do então disciplinado
noviço nos meados dos 60 e beatnik à brasileira dos 70/80 é narrada com
riqueza de detalhes por Jotabê Medeiros.
O livro de Jotabê,
que chegou às prateleiras ainda sob o impacto da morte do poeta, conduz a
passagens da vida do artista-gênio que fecham os quebra-cabeças às interpretações
de muitas letras e composições de Belchior.
Circunstâncias
sociais e políticas, fatos, ambientes, infortúnios, sofrimentos, desafetos,
companhias, paixões e amores. O compositor e cantor cearense é uma espécie de
esponja que não apenas traga o que vive e está à sua volta, mas também responde
às inquietações nos caminhos que percorre mediante canções e letras. Belchior é
um trovador da vida profunda.
O ex-estudante de
Medicina, com robusta formação humanista advinda da breve passagem religiosa e
também como erudito autodidata, é um intelectual que desdenha caprichosamente
desta condição. Como afirma em Alucinação, um dos seus maiores sucessos, trata-se
de um jovem que “não está interessado em nenhuma teoria” e sua alucinação são “experiências
com coisas reais”.
Acervo cultural
que lhe serve de combustível para provocar ícones da MPB, a exemplo de Caetano
Veloso, para quem mandou o recado de que “nada é divino e maravilhoso”, em
referência ao título homônimo de uma das canções do artista baiano. Ou mesmo
peitar destemidamente seu companheiro da sócio-gênese musical da “turma do
Ceará”, Raimundo Fagner, com quem compôs Mucuripe
e depois rompeu em desavenças que quase chegaram às vias de fato.
Belchior é reflexo
de um Ceará culturalmente insurgente nos sufocantes anos 70, que reuniu artistas
e intelectuais valiosos, como Fausto Nilo, Amelinha, Petrúcio Maia, Ednardo e
Barbosa Coutinho, entre outros. Este último, intelectual de envergadura e
psicanalista, é o personagem ao qual o Bob Dylan do Nordeste se refere num
trecho da letra de Divina Comédia Humana,
outro dos seus grandes sucessos. É Barbosa, este amigo seu, que o aconselha a
ser “feliz direito”.
Contestador não
apenas do sistema político-social-econômico, Belchior também enfrenta os
meandros nem sempre éticos da indústria fonográfica, à qual não se dobra para
renunciar princípios por trocas mercantis fulgazes. É firme e dribla os ditames
do mercado com produções que jamais renunciam às suas digitais artísticas, o
que não significou nenhum tipo de purismo à Elis Regina, intérprete de voz
incomum que chegou a comandar passeatas contra a guitarra elétrica, instrumento, segundo ela e outros, do imperialismo cultural estadunidense.
Ao contrário. O
cearense jamais se permitiu a querelas com questões menores e risíveis. Flertou
com o blues, o rock, o jazz e a dancing music mesclando estes gêneros ao baião,
o xaxado e outros ritmos do seu Nordeste. Via como convergentes influências musicais
de Dylan e Luiz Gonzaga; assim como amava as obras de Gonçalves Dias e do
estadunidense contraculturalista Alen Gisberg.
E pelos acasos da
vida, foi Elis Regina a responsável por lançar Belchior ao reconhecimento
nacional interpretando magistralmente Como Nossos Pais, hino da resistência à opressão da ditadura.
A pesquisa de
Jotabê acompanha a trajetória do artista até seu auto-exílio no sul do país,
onde se entrega ao anonimato por mais de uma década entre desventuras e
dificuldades financeiras.
A opção por uma
vida discreta, como um cidadão fora dos holofotes e que declinava de voltar à
ribalta e também de ser ajudado por outros artistas, amigos e admiradores
talvez tenha sido o veredicto que Belchior se impôs para afirmar sua relação
com a existência humana, o que ele tentou compreender à exaustão e, de alguma forma, traduziu suas mazelas e esplendores belíssimamente.
Serviço:
Belchior, Apenas um Rapaz Latino-americano
Editora Todavia
235 páginas
Serviço:
Belchior, Apenas um Rapaz Latino-americano
Editora Todavia
235 páginas
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