Num dia de agosto de 1992
Márcia Misi, à direita, e Ana Beatriz, à esquerda Foto: Zeca Peixoto |
Nunca fui repórter fotográfico. No texto escrito atuei como repórter, editor e chefiei reportagens, embora minha velha Nikon FM2, analógica e manual, companheira de muitas estradas e hoje decorando a estante, sempre estivesse à mão. Devo à essa querida extensão de prótese ocular muitos registros, mesmo que meras manchas desfocadas. Um deles, o que figura acima, é, para mim, emblemático.
Explico enquanto escuto Tudo
outra vez, do imortal Belchior.
Há, aproximadamente, três meses fui
procurado pelo amigo Penildon
Silva Filho, atuante do movimento estudantil na década de 90 e hoje pró-reitor
de Graduação da UFBA. Me pediu algumas imagens. Registros de passeatas e
mobilizações do ME em Salvador quando do grande levante nacional pela deposição, via
impeachment, do então presidente Fernando Collor de Mello. À época havia me
aproximado de algumas dessas lideranças. Entre idas e vindas na ponte
Salvador-Brasília, onde já residia, conheci Penildo, estudante de Engenharia, e Alexandre Sales Vieira,
estudante de Direito.
Era bom estar entre eles. Não apenas porque
eram fontes necessárias ao meu trabalho. De alguma forma, me renovavam o espírito
de luta. Aos 29 anos já tivera passagens pelo movimento secundarista, quando
fui presidente do grêmio do colégio Ipiranga e, concomitantemente, quadro da Ação
Popular, onde aprendi a fazer, estudar e, também, contestar a política para
posteriormente seguir a terapia
anarquista, do psicanalista Roberto Freire. Do cristianismo utópico à militância
do corpo foi um pulo. Era mais divertido e revolucionário, tinha certeza.
Cedi as imagens, claro.
Grata surpresa. O material passou a
integrar o site colaborativo www.foracollor25anos.com.br.
E nele, entre os registros
de minha autoria lá publicados, figura uma das fotografias dentre as que
mais me marcaram a trajetória como profissional de comunicação. Não
necessariamente pela repercussão pública que a imagem teve, mas, e sobretudo,
no recôndito do meu pensamento.
Por mais de duas décadas observava
eventualmente a foto e me perguntava onde estariam aquelas meninas. Mudei de
residência e cidade em diversas ocasiões e a caixa com os negativos daqueles
registros era a primeira preocupação. Memórias das trilhas por onde passei.
1992. Agosto. O país fervilhava exigindo o
impeachment do então presidente Fernando Collor de Melo. Me encontrava em
frente à Reitoria da UFBA quando observei duas jovens “caras pintadas”. Seus
rostos estavam hermeticamente divididos em preto e branco. Preto era a cor que
marcava os protestos que exigiam a saída de Collor de Melo do Palácio do
Planalto. O Brasil estava pintado de preto.
As jovens conversavam animadamente.
Empunhei a câmera e me dirigi às duas: posso? Permissão concedida, puxei a manivela
e disparei o dedo numa sequência de cliques. Eram as estudantes de Direito Márcia Misi e Ana
Beatriz. Revelei o material e entreguei aos integrantes do Diretório
Central dos Estudantes da UFBA.
A foto explodiu em circulação e se tornou
um dos símbolos das mobilizações do ME de Salvador no período da luta pelo
impeachment de Fernando Collor. Márcia fora apontada como musa do movimento.
Bonita, cabelos untados e penteados para trás emolduravam um olhar desafiador,
destemido. Ao lado, sua companheira Ana Beatriz, exibindo o mesmo penteado,
dispensava um belo sorriso discreto e complacente com a amiga.
Não eram expressões de diversão e sim de
luta.
Na sexta, 29/09, fui convidado para a
solenidade de lançamento do site no Sindicato dos Engenheiros da Bahia.
Penildo, as meninas da foto estão aqui?
- Sim, Márcia Misi está aqui ao seu lado.
Me aproximei e indaguei à ela apontando
para a projeção da foto na tela: é você? Solicitamente ela respondeu que sim
balançando a cabeça. Praticamente o mesmo rosto.
Sou o autor da foto, disse.
Márcia se levantou e nos cumprimentamos.
Emoção. Calculava como impossível reencontrar as personagens daquele click. Mas
reencontrei uma delas e por alguns instantes um filme me percorreu a mente.
Conversamos.“Ainda lembro daquele momento”, assegurou. Márcia,
atualmente advogada e professora da UEFS, detalha o clima que envolveu a
imagem. "Havia um sentimento misto de frustração
e esperança. Frustração porque estávamos querendo tirar o
primeiro presidente eleito depois de uma longa ditadura. Esperança porque tudo
indicava que isso aconteceria, como aconteceu, em respeito à ordem
constitucional recém estabelecida, com os militares de fora!"
Sobre o momento do click, lembra: "Saímos
da casa de Bia (Beatriz) com vontade de mostrar nossas caras pintadas (...) mostrar
esses sentimentos antagônicos de tristeza e alegria. Mas também queríamos
mostrar que a democracia é construída coletivamente. Quando você (este que
escreve) pediu para tirar uma foto, chamei a minha cara metade. Sem pensar, a
composição expressou com precisão o que se passava naquele momento".
O depoimento de Márcia é corroborado por
Ana Beatriz."(...) Essa foto marcou
uma época e marcou também nossas vidas. Momento importante na democracia
brasileira, ainda tão jovem. Lembro bem do dia. Eu e Marcinha resolvemos fazer
cara metade pra nos complementarmos, pra mostrar que inteiro éramos mais
fortes! Estávamos fazendo história!", recorda.
Embora não estivesse presente no lançamento
do site, Beatriz nos concedeu este depoimento de São Paulo, onde reside. Ela
deixou a faculdade de Direito no terceiro ano para trilhar outros caminhos.
Cursou Letras Vernáculas com língua estrangeira e posteriormente também se
graduou em Design com especialização em paisagismo. "Sou eclética", brinca.
Reencontrei também o advogado Alexandre
Sales Vieira, ex-presidente da UNE, com quem o papo fluiu por mais de uma hora.
Vieira recordou alguns pormenores daqueles dias. "Era uma disputa política também acirrada nas hostes da oposição.
Todos queriam tirar proveito do movimento, inclusive os à época candidatos a
prefeito de Salvador, o que não permitíamos individualmente. O movimento era
maior", afirma.
Serindipidades.
Gratidão ao amigo Penildo Silva e desculpas
pelos contratempos de fazer o material chegar às suas mãos. Sem a iniciativa
dele estes momentos, riscados como rupestres existenciais da minha vida,
certamente que nunca seriam rememorados.
Muita gratidão, Pena!
Fica a dica: sugiro àqueles que ainda não visitaram o site que o façam. É uma excelente oportunidade de observar registros históricos cujos desmembramentos ainda se fazem presentes na vida social e política do país, que tanto necessita do vigor da juventude para enfrentar a estupidez política que avança neste nosso sofrido Brasil. Lembrando um hit da banda de rock Plebe Rude, bastante veiculado naqueles dias, até quando esperar?
Fica a dica: sugiro àqueles que ainda não visitaram o site que o façam. É uma excelente oportunidade de observar registros históricos cujos desmembramentos ainda se fazem presentes na vida social e política do país, que tanto necessita do vigor da juventude para enfrentar a estupidez política que avança neste nosso sofrido Brasil. Lembrando um hit da banda de rock Plebe Rude, bastante veiculado naqueles dias, até quando esperar?
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