O último recado de Milton Santos - o texto
As cenas são fortes e reveladoras. Imigrantes latinos tentando atravessar a fronteira do México com os Estados Unidos; pobreza no Brasil, na Bolívia, na Índia; Protestos e reivindicações dos movimentos sociais. A cada denúncia à globalização, sólidos argumentos. Irrefutáveis. E as imagens marcantes vão se entrelaçando com um doce personagem, que também é firme, duro. O entrevistado é o geógrafo Milton Santos, intelectual reconhecido internacionalmente. O entrevistador é o cineasta Silvio Tendler (Jango, Os anos JK, entre outros). E o filme: Encontro com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá. Dirigido por Tendler e premiado no Festival de Cinema de Brasília de 2006, o documentário - já em exibição em diversos circuitos culturais - é um tapa na consciência de quem assiste. Com roteiro bem estruturado, consegue construir cada idéia extraída de Milton Santos veiculando cenas de situações vivenciadas em diversas partes do mundo. Crítico mordaz da globalização neoliberal, o geógrafo sustenta uma inteligente oposição ao fenômeno, que apenas beneficia os países mais ricos em detrimento dos mais pobres. Ainda que considere a globalização inevitável, Milton Santos acredita que é possível mudar a forma como esta se processa, transformando-a a partir das suas próprias dinâmicas. Ele é categórico e deixa transbordar sua inteligência: “Até hoje nunca tivemos humanidade, apenas alguns ensaios. Talvez estejamos vivenciando mais um grande ensaio”. E, quando provocado, o intelectual é enfático: “Não milito em nenhum partido, não pertenço a nenhuma organização política, não sou ligado a nenhum grupo”, diz, contundente, deixando clara sua posição de franco atirador que troca o adjetivo de marxista por marxisisante. Pura dialética. Negro, olhos semicerrados e gestos simples, o Prof. Dr. Milton de Almeida Santos nasceu em Brotas de Macaúbas, no interior da Bahia, no dia 03 de Maio de 1926. Em 1948 formou-se em Direito pela UFBA e em 1958 fez doutorado em Geografia na Universidade de Estrasburgo, na França. Como livre pensador, foi doutor honoris causa em vários países, ganhando o prêmio Vautrin Lud - o prêmio Nobel da geografia - em 1994. Quando esteve exilado por conta do Golpe Militar de 1964, Milton Santos atuou como professor em diversos países e publicou cerca de 40 livros. Um currículo que Silvio Tendler teve a maestria de dissecar, não por previsíveis arrolagens de titulação, mas, sobretudo, pela sagacidade dos questionamentos. E um dos momentos mais fortes é quando o cineasta dispara: “É difícil ser um intelectual negro?”. O resultado é uma resposta seca e direta: “É difícil ser negro”. O documentário tem clima de despedida, talvez pela passagem de um momento a outro da sociedade humana, ou mesmo do entrevistado, que sugere querer deixar suas últimas mensagens. Na derradeira cena, Santos levanta-se apoiado numa bengala, abre um sorriso e ausenta-se da sala de entrevista. Seis meses depois da gravação ele morreu. Um último ato de quem parece antever o início dos próximos passos da humanidade.
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