Beleza Pura?

O autor da nova novela das sete, Silvio de Abreu, talvez nem saiba o sentido exato da mensagem da música-tema do novo folhetim. Beleza Pura não é a Zona Sul do Rio de Janeiro com seus personagens previsíveis, mas um momento de afirmação étnica-política de vastas parcelas da população de Salvador


A música-tema da próxima novela do horário das sete da Globo, Beleza Pura, é a composição homônima Beleza Pura, de autoria de Caetano Veloso. É muito estranho que esta canção sirva de trilha para imagens que apresentem cartões postais do Rio de Janeiro entremeadas com rápidas cenas do novo folhetim, nas quais figuram tipos físicos e ambientes sociais bem diversos das imagens retratadas pela música. Segundo o próprio autor, “Beleza Pura é uma saudação ao início da ‘tomada’ da cidade do Salvador pelos pretos nos anos 70”. A argumentação de Caetano pode ser encontrada às páginas 27 e 30 do livro Sobre as Letras (Companhia das Letras). O compositor baiano é taxativo ao afirmar que sua música inspira-se nos “pretos, puxadores de rede, de xaréu, tocadores de candomblé, pescadores, vendedores de acarajé” que “saíram dos seus lugares” para afirmar sua identidade cultural numa cidade majoritariamente afrodescendente e pobre. Caetano afirma que quando compôs a música suas parabólicas estavam voltadas aos movimentos libertários dos negros da África do Sul e dos Estados Unidos (movimento Black Power), que foram assimilados naquele momento histórico pelos negros da Bahia. Dizer beleza pura então era o mesmo que dizer black is beatiful (negro é lindo). Nas cenas de apresentação da novela, é paradoxal ouvir o trecho “quando essa preta começa a tratar do cabelo” tendo como imagem de cobertura atores globais brancos num contexto extremamente díspare com o da letra. Ou qual das duas atrizes, Regiane Alves ou Zezé Polessa, é a tal “preta que trata o cabelo”? Será difícil também na trama global ver algum “negro lindo do Badauê” ou alguém “dentro daquele turbante dos Filhos de Ghandi”? Este não seria o caso de Edson Celulari vestido de mauricinho executivo. Não, a novela não se passa em Salvador dos anos 70 nem 80 com toda sua ebulição cultural, mas num Rio de Janeiro zona sul atual com personagens que representam empresários ricos, dondocas deslumbradas e ambientes sofisticados. É possível que o próprio autor da música nem se importe com tal fato, pois, que se saiba, para Caê tudo é cultura, até mesmo as cretinices folhetinescas da Rede Globo. Mas quanto aos autores do texto, Sílvio de Abreu e Andréa Maltarolli, será que conhecem o sentido da letra da música-tema da novela que estão escrevendo? A diversidade cultural do país novamente se vê anulada pela pretensão da Rede Globo em estabelecer por decreto próprio que o Brasil foi batido num liquidificador e diluído no Rio de Janeiro. A trama nem foi posta no ar, mas já é um estupro cultural. A Rede Globo produz conteúdos comunicacionais como se estivesse lhe dando com um público homogêneo, onde todos são carioquizados de forma fórceps. A desconstrução do discurso de uma canção com profundo valor estético-político numa novela de “babados” e fatos sem importância, é a ponta de um iceberg maior que remete à questão da diversificação dos conteúdos televisivos no Brasil, país onde a produção audiovisual regional fora do eixo Rio-São Paulo tem encontrado pouco ou quase nenhum espaço para escoar seus produtos. O resultado dessa anomalia num país multifacetado culturalmente são aberrações do tipo Beleza Pura (a novela). Não é querendo ser reticente, mas enquanto a emissora do Jardim Botânico se mantiver hegemônica nas telinhas do Brasil, um vasto conjunto de brasileiros continuará a não se enxergar na principal mídia da sociedade, como uma “moça preta do Curuzu” (bairro de Salvador e maior conglomerado humano afrodescendente do mundo) que serve de tema às papagaiadas novelescas da campeã de audiência. Conselho: mudem de canal.

Comentários

Efraim Neto disse…
Como essa realidade audio-visual brasileira é dura!... Se este fosse o 1º caso de tamanha ignorância entre a mistura dos diversos modelos culturais do nosso país, seria sim de assustar! Infelizmente não é!...
Apresentações similares se encaixam em vários outros programas da Rede Globo, e não somente à ela. Enfim, talvez a melhor opção para nossa juventude e sociedade seja a literatura.
Abraços,
Parabéns Zeca, a Globo é vezeira em fazer isso, acredito que o Sílvio e cia, tenha conhecimento sim, ou então eles nem leram a letra da música. Concordo com você o melhor e mudar de canal. Abraços Marcos Gouveia
Anônimo disse…
O autor não deve ter noção do real teor da música, assim como os atores e os futuros telespectadores.

Afinal, a Globo não tem o objetivo de informar criticamente. Se isso acontecesse, poucos assistiriam ao folhetim. Dane-se o contexto da música, dane-se o teor histórico. A Globo quer é a audiência.

Portanto, mais um noveleco da Globo e mais um estupro cultural, como afirma o autor deste blog.
É triste, mas é verdade. O que resta? A trincheira. E ficar na trincheira é pauleira. É baculejo puro. A análise é perfeita Zeca. Você até podia me polpar tempo e avaliar a novela das 8h. É escandalosa a ofensiva neoliberal da Globo, sem contar aqueles bonecos que figuram a mensagem de ano novo da emissora, todos vestidos de operários. A ofensiva vem forte...é preciso colocar o sinto de segurança. Por isso Zeca é sério - precisamos formar uma rede de comunicação alternativa e organizada: uma Central Alternativa e Organizada da Sociedade. È preciso organizarmos uma imensa rede solidária.
Vinícius F S disse…
Gente,
não tem nenhum ator negro nos créditos a abertura, se repararem no site oficial, só tem atores brancos, no máximo, morenos que nem chegam a mulatos.
Eu mandei um e-mail pra Globo, quero só ver o que les vão fazer!!!

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