Chega de sangue e cinismo
O debate acerca de uma séria questão começa a ganhar claridade e racionalidade no país. No decorrer da semana o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral (PMDB), levantou a proposta da descriminalização das drogas como forma de desarticular o narcotráfico. Em diversos países do mundo essa medida já é realidade e aqui no Brasil o problema ainda vive sob o manto da hipocrisia e do falso moralismo. Enquanto isso, a indústria da morte perpetrada pelo crime organizado continua a atuar mutilando vidas e ameaçando milhares de comunidades pobres país afora. É nas favelas e periferias das grandes cidades que o narcotráfico infiltra-se, desenvolve sua indústria, impõe seu poder e organiza seus centros de distribuição para abastecer o consumo das classes médias e altas. É nessas comunidades também que a polícia invade, assassina inocentes e, junto com os bandidos, impõe o medo às populações. Nesse enredo, tudo pode ocorrer. O marginal visto como mocinho pela população e policiais, delegados e juízes, transvestidos de lei, atuando como marginais em consórcio com o crime. A proibição das drogas gera lucros para muitos. É chegado o momento de encarar o problema de frente.
A sugestão de Cabral traduz o que um expressivo contingente de profissionais que debatem a questão há anos vem buscando alertar: a droga ilícita é um problema de ordem psicológica, social e de saúde pública, assim como as drogas lícitas, a exemplo do álcool, açúcar, medicamentos vendidos em farmácia etc. Tais situações não podem ser enquadradas como problema policial. O cretinismo, o cinismo e o preconceito das classes dominantes no Brasil, assim como em outros países, é que levaram a entender o consumo de drogas como delito de lesa-moral. Proibiram-nas e permitiram o surgimento de uma sociedade convulsionada, doente.
Peguemos o exemplo da maconha, cujo nome científico é Canabis Sativa e a substância psicoativa o Tetrahidrocanabinol. Esta tem seus primeiros indícios de uso há mais de cinco mil anos, quando povos como os chineses e persas a utilizavam como incenso em cerimônias religiosas. Era também usada com fins medicinais, o que perdurou até o início do século XX. No Brasil, a droga foi trazida pelos escravos vindos da África que faziam uso em diversos tipos de rituais e, no regime escravocrata, para suportar a opressão do dia-a-dia.
Tanto aqui como em outros locais do mundo ocidental, a exemplo dos Estados Unidos, a proibição legal da utilização da maconha foi definida nos anos 40. No Brasil, assim como nos EUA, potencializou-se o preconceito da origem, a África. Um preconceito cultural e de classe, sim. Se realmente o que fosse justificar a proibição apenas se resumisse aos efeitos sobre os usuários o álcool não seria liberado, pois é sabido que tem conseqüências muito mais devastadoras no organismo do que a maconha.
Nos anos 60 e 70, sob a bandeira dos movimentos libertários, como o Hippie, a utilização da maconha vem novamente à baila. E o preconceito também. A contracultura batia-se no questionamento aos valores da sociedade ocidental. Usuário de maconha passou a ser sinônimo de marginal. Em pleno Regime Militar, esse estigma foi avivado sobremaneira.
A verdade é que o uso de drogas nas comunidades humanas sempre existiu e existirá. Não há como negar tal fato. Cinismo é ver o mundo caminhar para a destruição pelos efeitos do aquecimento global provocado pela sociedade industrial e achar que esse “fim de mundo” seria legalizar drogas.
Tudo bem, o fato de uma substância ser considerada droga admite-se que tal tenha elementos lesivos ao organismo, e, portanto, destrutivos. Não se pode também negar isso. A apologia à alta-destruição não é o que se prega. Pelo contrário. É entender que o usuário, a depender da sua situação, é um caso de tratamento e não de prisão. E o Estado deve saber quantos potenciais doentes existem na sociedade para, aí sim, lançar mão de políticas públicas preventivas que minimizem o problema que, frisando, é de ordem social. É notório o sucesso das campanhas antitabagistas. De vinte anos para cá o número de fumantes foi drasticamente reduzido, e olha que se trata de outra droga infinitamente mais danosa do que a maconha, ainda que lícita.
Mas o problema não se encerra aí. Há aqueles que perguntarão sobre a cocaína, o crack e outras drogas de efeitos também devastadores sobre o organismo. A eliminação do comércio da maconha de forma ilegal abalará sobremaneira as finanças do narcotráfico. A venda da maconha, pelo fato de ser o entorpecente ilícito mais popularizado e também utilizado, é o que move o capital de giro dos narcotraficantes para a comercialização das drogas pesadas. E essa queda de receita é determinante para, inicialmente, pôr o narcotráfico de joelhos.
Choque de interesses
Retomemos a questão ao ponto de partida. Com um bom atraso a classe política brasileira começa a buscar medidas racionalizadas para o combate ao narcotráfico. Com exceção do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) (e outros poucos), que há anos milita pela legalização do uso da maconha, a maioria dos políticos do país ainda prefere acompanhar seus sensos morais conservadores ou mesmo se esquivar do problema para não se expor. Creio que o Congresso ainda resistirá bastante para tomar medidas mais ousadas.
E daí surge outro problema de ordem internacional. Para que o país assuma tal política será preciso enfrentar os interesses dos Estados Unidos. A política norte-americana para o controle do tráfico de drogas na América do Sul, se não tem conseguido reduzir o comércio de entorpecentes, pelo menos conseguiu estabelecer-se como praticamente a única agenda assumida em conjunto pelos países sulamericanos, inclusive o Brasil. E esta agenda beneficia as demandas comerciais, sociais e ideológicas dos Estados Unidos.
A prevalência da agenda dos EUA, ou seja, o combate limitado apenas à repressão militarizada, permite uma eficiente prática de intervencionismo dissimulado e a penetração comercial de empresas norte-americanas, como as que comercializam armamentos, por exemplo. É uma realidade fruto de articulações que os norte-americanos realizam desde o início deste século, com a promoção de encontros e acordos internacionais que vão sendo, um após o outro, assumidos pelos demais países do continente.
Nesse caso, o enfrentamento ao narcotráfico mediante a legalização de drogas mais leves pode acenar como uma política pública muito mais eficiente do que o estilo “xerife” do Tio Sam. E o que é pior, para eles, claro, os EUA perderiam sua hegemonia nessa frente de interesses. Deixar de vender armas e consultorias para as polícias do Brasil e dos demais países do continente pode não ser um bom negócio para Bush Jr.Está lançado o debate. Espera-se que desta vez o bom senso prevaleça, pois nesse momento que escrevo lamentavelmente vidas estão sendo ceifadas pelo país na disputa de pontos de vendas de drogas.
A sugestão de Cabral traduz o que um expressivo contingente de profissionais que debatem a questão há anos vem buscando alertar: a droga ilícita é um problema de ordem psicológica, social e de saúde pública, assim como as drogas lícitas, a exemplo do álcool, açúcar, medicamentos vendidos em farmácia etc. Tais situações não podem ser enquadradas como problema policial. O cretinismo, o cinismo e o preconceito das classes dominantes no Brasil, assim como em outros países, é que levaram a entender o consumo de drogas como delito de lesa-moral. Proibiram-nas e permitiram o surgimento de uma sociedade convulsionada, doente.
Peguemos o exemplo da maconha, cujo nome científico é Canabis Sativa e a substância psicoativa o Tetrahidrocanabinol. Esta tem seus primeiros indícios de uso há mais de cinco mil anos, quando povos como os chineses e persas a utilizavam como incenso em cerimônias religiosas. Era também usada com fins medicinais, o que perdurou até o início do século XX. No Brasil, a droga foi trazida pelos escravos vindos da África que faziam uso em diversos tipos de rituais e, no regime escravocrata, para suportar a opressão do dia-a-dia.
Tanto aqui como em outros locais do mundo ocidental, a exemplo dos Estados Unidos, a proibição legal da utilização da maconha foi definida nos anos 40. No Brasil, assim como nos EUA, potencializou-se o preconceito da origem, a África. Um preconceito cultural e de classe, sim. Se realmente o que fosse justificar a proibição apenas se resumisse aos efeitos sobre os usuários o álcool não seria liberado, pois é sabido que tem conseqüências muito mais devastadoras no organismo do que a maconha.
Nos anos 60 e 70, sob a bandeira dos movimentos libertários, como o Hippie, a utilização da maconha vem novamente à baila. E o preconceito também. A contracultura batia-se no questionamento aos valores da sociedade ocidental. Usuário de maconha passou a ser sinônimo de marginal. Em pleno Regime Militar, esse estigma foi avivado sobremaneira.
A verdade é que o uso de drogas nas comunidades humanas sempre existiu e existirá. Não há como negar tal fato. Cinismo é ver o mundo caminhar para a destruição pelos efeitos do aquecimento global provocado pela sociedade industrial e achar que esse “fim de mundo” seria legalizar drogas.
Tudo bem, o fato de uma substância ser considerada droga admite-se que tal tenha elementos lesivos ao organismo, e, portanto, destrutivos. Não se pode também negar isso. A apologia à alta-destruição não é o que se prega. Pelo contrário. É entender que o usuário, a depender da sua situação, é um caso de tratamento e não de prisão. E o Estado deve saber quantos potenciais doentes existem na sociedade para, aí sim, lançar mão de políticas públicas preventivas que minimizem o problema que, frisando, é de ordem social. É notório o sucesso das campanhas antitabagistas. De vinte anos para cá o número de fumantes foi drasticamente reduzido, e olha que se trata de outra droga infinitamente mais danosa do que a maconha, ainda que lícita.
Mas o problema não se encerra aí. Há aqueles que perguntarão sobre a cocaína, o crack e outras drogas de efeitos também devastadores sobre o organismo. A eliminação do comércio da maconha de forma ilegal abalará sobremaneira as finanças do narcotráfico. A venda da maconha, pelo fato de ser o entorpecente ilícito mais popularizado e também utilizado, é o que move o capital de giro dos narcotraficantes para a comercialização das drogas pesadas. E essa queda de receita é determinante para, inicialmente, pôr o narcotráfico de joelhos.
Choque de interesses
Retomemos a questão ao ponto de partida. Com um bom atraso a classe política brasileira começa a buscar medidas racionalizadas para o combate ao narcotráfico. Com exceção do deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) (e outros poucos), que há anos milita pela legalização do uso da maconha, a maioria dos políticos do país ainda prefere acompanhar seus sensos morais conservadores ou mesmo se esquivar do problema para não se expor. Creio que o Congresso ainda resistirá bastante para tomar medidas mais ousadas.
E daí surge outro problema de ordem internacional. Para que o país assuma tal política será preciso enfrentar os interesses dos Estados Unidos. A política norte-americana para o controle do tráfico de drogas na América do Sul, se não tem conseguido reduzir o comércio de entorpecentes, pelo menos conseguiu estabelecer-se como praticamente a única agenda assumida em conjunto pelos países sulamericanos, inclusive o Brasil. E esta agenda beneficia as demandas comerciais, sociais e ideológicas dos Estados Unidos.
A prevalência da agenda dos EUA, ou seja, o combate limitado apenas à repressão militarizada, permite uma eficiente prática de intervencionismo dissimulado e a penetração comercial de empresas norte-americanas, como as que comercializam armamentos, por exemplo. É uma realidade fruto de articulações que os norte-americanos realizam desde o início deste século, com a promoção de encontros e acordos internacionais que vão sendo, um após o outro, assumidos pelos demais países do continente.
Nesse caso, o enfrentamento ao narcotráfico mediante a legalização de drogas mais leves pode acenar como uma política pública muito mais eficiente do que o estilo “xerife” do Tio Sam. E o que é pior, para eles, claro, os EUA perderiam sua hegemonia nessa frente de interesses. Deixar de vender armas e consultorias para as polícias do Brasil e dos demais países do continente pode não ser um bom negócio para Bush Jr.Está lançado o debate. Espera-se que desta vez o bom senso prevaleça, pois nesse momento que escrevo lamentavelmente vidas estão sendo ceifadas pelo país na disputa de pontos de vendas de drogas.
Comentários
Finalmente, há alguém dentro do poder estabelecido e reconhecido como 'legal' que se arvore a propor uma discussão (não há fórmulas prontas para isso). Vamos ver aonde vamos.
Um abraço e um tapa na pantera.
Reinofy Duarte
Aqui quem escreve é Euro Azevêdo, 3º semestre de Jornalismo da FJA. Fui seu aluno no primeiro semestre, e já naquele momento a sua postura me deixou interessado e curioso. Cada aula era quase que um tapa(sutil e irônico, diga-se de passagem) nos rostinhos rosados, assépticos e sempre indiferentes de certos colegas meus. Essa postura contestadora e lúcida se mostra presente também nesse texto sobre a situação das drogas no Brasil. Levando em consideração a "vida louca" que têm os moradores das favelas, é muito fácil perceber que há realmente uma "troca de papéis"; a polícia MATA, e o traficante vira "governador substituto", pois os verdadeiros governantes já se esqueceram há muito daquele pedaço de terra em declive...
Concordo com a opinião exposta no texto e acredito veementemente que a legalidade das drogas representa uma solução muito mais eficiente e sensata do que reprimir e tentar bater de frente, bala à bala, com o "inimigo".
Bom, pra terminar, queria dizer que o teu texto me lembrou uma música do Chico Buarque. Vou deixar o link da letra aqui, caso você queira dar uma olhada: http://chico-buarque.letras.terra.com.br/letras/535176/
Um abraço e desculpa por essa "redação" minha. Até!
E dizer que maconha torna as pessoas perigosas é de uma ignorância que irrita. Ai, dizem, mas o cara passa para a cocaína depois da maconha! mentira! maconheiro que se preza não chega perto do pó. Eu não fumo, mas conheço várias pessoas que fumam e vivem normalmente.
Um abraço. Gostei do seu blog. Dalva quem mandou.
Vou ver se falo disto estes dias, vão me dar uma surra hihihi
Outra questão: quem eu sei que consome faz parte mesmo da minha classe social e das mais altas castas. Encontrei mais usuários numa festa da alta paulista do que num caruru a que fui na favela de Salvador. Juro. Quem pode pagar pelo preço da droga?
Talvez a legalização seja mesmo a solução no combate ao crime. Penso sempre que tipo de ação seria necessária... Concordo com a legalização. Em torno da maconha, por exemplo, há mais folclore negativo e associações ideológicas patrocinadas pela ditadura do que prejuízo real.
Alguém aqui acha que a campanha da Globo pela paz vai mudar o Rio? Que passeata de mãos dadas vai acabar o narcotráfico? Ou vê como solução explodir e implodir a favela?
Ora, abaixo a ingenuidade!
Por outro lado, não consigo visualizar (ainda) a venda destas substâncias. O merchandising desta ou daquela marca na novela e a propaganda deliberada da "Maconha for you". Também não consigo ver ainda a desarticulação deste câncer social que é o crime.
Vamos à frente, há água a rolar.